A Freita é… A FREITA – Parte 1
Quando pediram ao Kilian Jornet para definir a maratona de montanha que decorre no País Basco, em Zegama, ele disse “Zegama es… Zegama.” Simples.
Em Portugal temos algumas provas que se estão a tornar ícones do Trail mas a Freita é a Mãe de todas e atrevo-me a dizer (tendo estado à partida já duas vezes) que continua a ser a mais fantástica prova neste rectânculo à beira mar plantado. Assim quando me perguntam como é a Freita só me apetece responder: A Freita é… A FREITA.
Apesar de há três anos me ter dedicado às Ultras a Freita era algo que me assustava ao principio. Tudo o que ouvia sobre ela me fazia duvidar das minhas capacidades de autonomia em montanha para superar um percurso tão selvagem, técnico e inóspito. O ano passado finalmente senti que era hora de enfrentar este desafio. Infelizmente tive alguns problemas de saúde pouco antes de chegar o dia da prova e a Serra foi inclemente, fiquei aos 60km com a certeza que tinha capacidades para superar a prova mas não naquele dia.
A Freita parece um animal que fareja os nossos medos e fraquezas brincando connosco, testado os nossos limites, os nossos desejos e o nosso respeito.
À partida uma estranha calma toma conta de mim. Estou rodeado de amigos, loucos que buscam o mesmo. Olho para o topo do que me espera nos próximos 9km e quase duas horas penso serenamente que tenho muito tempo para lá chegar.
Dada a partida desejo boa sorte ao meu colega de equipa Bruno Moita e saio com um sorriso de orelha a orelha. Esperei um ano para voltar a estar aqui e agora espero estar ali de volta pelos meus próprios meios nas próximas 27 horas. Custe o que custar.
A primeira subida (9km até ás eólicas e 1º abastecimento) é feita nas calmas, na conversa, tentando controlar o ritmo da respiração, sem entrar em excessos ou loucuras. Imediatamente comecei a pôr o meu plano de prova em prática e comi logo à primeira hora, mesmo que o abastecimento não estivesse longe.
Passado o abastecimento começa a paixão, chego àquele planalto e esqueço o que já passei ou está para vir. Apaixono-me pela Freita e a sua beleza. Vou seguindo assim apaixonado e alegre com a brisa que se faz sentir e mantém a temperatura suportável até ao segundo abastecimento.
Aqui o José Moutinho diz aos atletas que vão passando: “Agora é que vai começar a Freita.” Ele sabe aquilo que diz e eu também sei.
Pouco depois é a separação dos percursos. Os voluntários que ali estão dizem: “65 para a direita 100 para a esquerda.” em tom de brincadeira pergunto: “Sem (100) quê?” Resposta pronta: “Juízo!!!” Como eles têm razão. A partir daqui está o trilho do carteiro, um belíssimo downhill, passamos pela primeira vez no rio Paivô, temos o túnel, pequenos troços de alcatrão e zonas em que sinto que estou a ser atirado literalmente ribanceira abaixo. Passamos em aldeias onde não se vê vivalma e finalmente chega um dos exlibris da prova: os quilómetros em que andamos no Rio Paivô. Aqui tudo é escorregadio, pedregoso, técnico, perigoso. Magoo o joelho contra uma pedra, caí vezes sem conta, fiz “sku” por uma laje quase atropelando outro atleta, mergulho, atravesso o rio a nado e vou parando constantemente para me refrescar e aproveitar este local acessível apenas a quem se aventura a embrenhar de forma radical na natureza.
Ao sair do rio tenho pena de não poder ficar ali todo o tempo a banhos e a descansar. Começo a sentir os efeitos dos quilómetros e do trabalho a que o meu corpo está a ser sujeito.
Venho comendo religiosamente de hora a hora mas sinto que o meu sistema digestivo não está a 100%. Estou constantemente a arrotar e sinto um nó na barriga.
No abastecimento à saída do Rio encontro algumas Salamandras e aproveito um apoio de luxo do Diogo Roquete que me ajuda a secar as pilhas e colocar no frontal. Não era suposto água ter entrado para dentro do saco, mas sobreviveu.
Como pouco, atesto bem e ai vou eu ansiando pela sopa antes do Portal do Inferno. Progrido fácil e vou feliz. O cansaço é o normal e o moral vai em alta. Mas poucos quilómetros à frente uma súbita dor no baixo ventre retira-me muita mobilidade… Será que chego ao Restaurante??? Impensável. Tenho mesmo de fazer uma paragem de emergência.
Regresso ao trilho completamente restabelecido e de novo com um sorriso.
Até à paragem da sopa sigo com o Enorme Jorge Serrazina que voa autenticamente pelos trilhos com uma mochila de 30L às costas. Realmente um dos atletas que mais admiro.
Os quilómetros passam rápido. Chego ao Restaurante onde temos a sopa e para acompanhar peço uma mini e um café gelado. Sabe-me mesmo bem. Agora começa o ataque à subida ao Portal do Inferno, onde o ano passado começaram os meus problemas, mas este ano vou subindo com muito maior facilidade. Aproveito o regato que corre no inicio da subida e junto a uma cascata molho-me, molho um buff que coloco por baixo do boné e ai vou eu fresquinho para o Inferno. Até dá para fazer algumas chamadas para o “mundo exterior” a contar como vão as coisas. Subo devagar mas confiante. Tudo em mim hoje grita calma e tranquilidade. Sei que estou a fazer um bom tempo mas isso é uma consequência e não o que está no topo dos meus pensamentos. Estou mesmo a divertir-me e a progredir como quero.
No abastecimento paro algum tempo para comer mais e beber algo fresquinho. Saio acompanhado pelo Ico Bossa e o Jorge Serrazina. Na subida que se segue eles vão fortes mas depois entramos na longa descida para Drave e eu disparo à frente deles. Chego ao fim da descida com os músculos carregados de ácido láctico e a doer. Como resolver? Atiro-me imediatamente ao rio para mais uns mergulhos, o Jorge chega pouco depois e acompanha-me. Até tiro a mochila para poder estar à vontade. Que belo banho!
De novo recuperado sigo caminho. Atravesso Drave a Aldeia Mágica a sentir-me muito bem. Paro para reencher os soft flasks na fonte, troco algumas palavras com duas escoteiras que ali estão e penso em voltar com mais alma para desfrutar da aldeia. O sol vai baixando no horizonte mas o calor mantém-se. Paro em todas as bicas para refrescar e felizmente este ano há imensas. Alguns quilómetros mais à frente encontro no trilho um membro dos GOBS (Grupo de Operações de Busca e Salvamento) que no ano anterior me acompanhou durante grande parte do percurso. Paro para o cumprimentar e ele avisa-me para aproveitar o Rio para encher o cantil pois na subida vai estar muito calor.
Infelizmente nesta fase diminuíram ainda mais a distância percorrida dentro do Rio. Apenas consegui dar um mergulho antes do ataque aos três pinheiros. No ano anterior esta subida acabou por ser definitiva na minha decisão de abandonar mas este ano subo calmamente, bem disposto e a encorajar os atletas que vou encontrando sentados a retemperar forças. Como é uma zona com rede recebo mensagens de alento e chamadas que ajudam ao passar do tempo, pois esta subida parece não ter fim.
Felizmente o percurso até ao abastecimento é em trilho lindíssimo, apesar de técnico não é dos mais complicados e bom para desfrutar. Chegando ao alcatrão encontro o Hélder Pinto que me diz que há um chuveiro neste abastecimento e que o resto da prova vai ter muita lama.
O chuveiro altera-me os planos para o abastecimento. Resolvo beber uma mini enquanto me refresco no chuveiro, depois mudo de roupa, falo com o Ricardo Ferreira e a Andreia Sousa para saber como estão a correr as provas ao resto do pessoal, como, bebo e para terminar lavo os dentes. Tudo isto enquanto vou conversando. Acabei por ficar neste abastecimento mais de meia hora mas dei o meu tempo por bem empregue.
Bem bebido, comido e recuperado estou pronto para atacar a Besta, saio ao som do Hino Nacional com quase 13h de prova.
Podem ler a segunda parte deste artigo aqui.